Da escrita na Era da Internet

“A minha máquina de escrever é o meu psicanalista”, mais coisa menos coisa, disse Hemingway. Num tempo de blogs, a escrita auto-reflexiva deixa os diários com cadeados e revela-se ao mundo. Antes escrevia-se para a gaveta, sonhando talvez com a publicação em livro. Hoje escreve-se para o blog, às vezes secretamente esperando o “upgrade” para papel, outras deitando sobre o teclado sentimentos e pensamentos escondidos, mas que urge deixar sair e, eventualmente, secretamente partilhar com o mundo.


Há uns tempos atrás escrevi um artigo sobre o fim do amor. Um dos e-mails que recebi a propósito dessa crónica, indicava apenas um link para um blog. Curioso, lá fui ver o que se escrevia por ali.Deparei-me com um weblog onde uma pessoa em sofrimento ali “deitava” os seus pensamentos e sentimentos. Pareceu-me um relato cru, honesto e pungente do que é estar a sofrer.
O autor fala de depressão, de ciúme, dos filhos, do querer e não querer, tudo de uma forma – naturalmente – anónima.
Por vezes não temos interlocutor para falar de certas coisas. É um lugar comum, com algo de romântico, a imagem do escritor sofredor sentado à frente da sua máquina de escrever, em pleno acto de criação. No último artigo falei do Ian Curtis, o que até será um bom exemplo, na música, deste tipo de estado criativo. Ao ler o blog que me chegou por e-mail, veio-me à memória uma frase que julgo ter lido no “Jornal de Letras” há muitos muitos anos e que atribuo a Goette: “Usa a tua dor e faz dela uma obra de arte”. Não é arte o que o autor deste blog faz e julgo que não tem pretensões a tal. É um sitio onde o autor conversa consigo próprio. Onde deita cá para fora a dor. Onde a usa, por vezes em verso..
Interessou-me também os comentários que as pessoas lhe iam deixando. Todas ou quase todas mensagens de esperança, de apoio. Curioso: Nem conhecemos os nossos vizinhos, mas deixamos uma palavra de conforto a um anónimo num blog.
A escrita tem um potencial libertador enorme, a meu ver. Por vezes ao escrever, encontramo-nos, organizamo-nos. Mas também nos podemos perder, desorganizar o pouco que ainda está organizado. Podemos fazê-la ponto de reflexão e de partida para mudança, como também a podemos tornar um buraco negro que suga toda a luz que ainda temos.
Nesta altura em que se falou de comportamentos de auto-mutilação, de sítios de Internet onde se criam comunidades cujos autores mutuamente reforçam comportamentos e pensamentos auto-destrutivos (como os dedicados à anorexia), a questão do diário enquanto livrinho com cadeado para ninguém ler ou sítio de Internet acessível ao mundo, levantam-nos questões ainda difíceis de fazer, quanto mais responder: Estão-se a criar ou a resolver problemas? Serão estes sítios em si mesmo um problema? Ou apenas um meio de gritar (ou perpetuar) a dor?
Se calhar num blog em que há comentários dirigidos à mudança positiva, a escrita pode ser um motor de mudança. Num sítio em que se louva a anorexia, talvez se esteja a favorecer a manutenção do problema.
A questão é que a Internet é hoje, também um meio, fácil e rápido, de encontrar iguais na multidão, para o bem e para o mal. Talvez encontrar a mão amiga que necessitamos e de que não dispomos à primeira vista. Ou a mão que nos falta para apertar o gatilho.
Quem escreve em sofrimento, deve também procurar ajuda real, face a face. Num amigo, num profissional de saúde. A mão digital nunca terá o calor da mão humana e não a substitui, mesmo que seja (espero) ponto de partida para a mudança – como, aliás, parece ter sido no caso do blog referido e que decidi manter anónimo, apesar de ter autorização para o divulgar.

Publicada porVictor Silva à(s) 14:24  

1 comentários:

Psicólogo Cláudio Drews disse... 10 de março de 2008 às 02:33  

Gostaria de acrescentar que a Internet é um importante meio de auto-conhecimento, pois sendo uma produção humana virtualmente livre de censuras, reproduz aquilo que o ser humano é em todas as suas facetas - das mais negras e destrutivas às mais brilhantes e enriquecedoras - sendo que basta estar na Internet para se deparar com todas estas facetas. Ao deparar-se com a realidade mostrada pelos outros, somos capazes de avaliar a maneira como vemos nossa própria realidade.
Mas, o mais importante, é que a pessoa em sofrimento psíquico possui uma visão de mundo que nem sempre corresponde a sua realidade, às suas potencialidades e perspectivas. Neste caso a Internet pode levar por caminhos tortuosos e transformar uma pessoa que, de outro modo, teria plenas condições de ter uma vida feliz e saudável.
Concordo inteiramente que o acompanhamento de um profissional da saúde mental pode ser o farol daqueles que navegam pelas águas da Internet com seus barquinhos carregados de tristezas, em especial os jovens.

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