Gravatas, doutores e engenheiros

O que nos leva a usar um pedaço de pano amarrado ao pescoço sem utilidade aparente?
Que mania é esta que temos, que qualquer pessoa supostamente importante terá de ser “doutor” ou “engenheiro”, mesmo que não tenha acedido a esses graus académicos ou profissionais?


As gravatas actuais são descendentes das “fascalia” romanas, que eram usadas pelos oradores para proteger as cordas vocais. Hoje em dia, não vejo razão pragmática para uso de tal objecto, a não ser talvez castigar o seu utilizador por qualquer pecado não confessado através do estrangulamento do pescoço.
Certamente já se depararam com a situação ridícula (eu assumo já se ter passado comigo) em que ao contactar com alguém com algum estatuto, tendemos a trata-lo por doutor. Mesmo que não saibamos se é licenciado. Mesmo quando até sabemos que não o é, mas por usar gravata (lá está!) parece que outra forma de tratamento será inadequada.
As gravatas e os títulos têm subjacente a questão do estatuto. O não uso da gravata, por exemplo, pode ser até uma tomada de posição política, de não alinhamento com as convenções típicas da nossa sociedade. Ou será por acaso que o Francisco Louça raramente usa gravata?
Tenho há anos uma conversa recorrente com a minha mãe: “Devias usar gravata. Assim até parece que não és doutor!” e eu lá vou replicando que a gravata não faz o homem e que, aliás, desde que fiz o mestrado estou dispensado disso porque ainda não inventaram um sinal exterior que se possa vestir para mostrar que somos Mestres ou Professores Doutores. Assumo que recorro a qualquer argumento para não usar gravata.
Nas últimas semanas assistimos (parece que a coisa ainda não acabou) e quase até à naúsea à discussão sobre se o Primeiro-Ministro é Engenheiro, Engenheiro Técnico, nenhuma das duas possibilidades. Cá para mim, se o Sócrates não usasse gravata, ninguém se tinha lembrado de ir ver o seu percurso académico. Usa gravata, não lhe basta ser primeiro-ministro do país, tem de ser engenheiro ou assim. Quanto às situações caricatas e rocambolescas deste caso, que se investigue se tiver de ser investigado. Depois digam-me alguma coisa. Para já interessam-me acima de tudo as gravatas. E os “Drs” e “Eng.”.
Há uns anos, havia um programa na TVI chamado “Doutores e Engenheiros” onde candidatos a esses graus académicos traziam para a televisão brincadeiras da praxe que deveriam ficar no seu contexto, a praxe. Ora vejam lá se aquele Doutor ou Engenheiro de hoje, tratado com extrema reverência, não andou a fazer parvoíces com mais ou menos graça quando era estudante. Da maneira como isto vai, mais dia menos dia vão investigar o passado praxístico dos políticos. Neste momento ainda bem que não tenho aspirações políticas. Iam investigar os meus tempos de faculdade e descobriam que andava de traje a fazer praxe aos caloiros. Para além disso, denominava-me doutor (sem o ser) e (claro está!) usava gravata (e capa e batina). Mais um sinal exterior de estatuto associado ao doutor….
Agora a sério: qualquer sociedade ou cultura utiliza marcadores estilísticos para demonstrar o estatuto de membros importantes ou para demonstrar a sua pertença. Grupos como as claques de futebol utilizam cachecóis (até mesmo no Verão) com as cores do seu clube. Os membros de culturas juvenis (muito associadas à música) usam vestuário distintivo que lhes permite identificar os “camaradas” e mostrar a sua diferença em relação à cultura “adulta”. Os universitários ligados à praxe utilizam o traje académico como forma de pertença e distinção dos que não partilham a mesma cultura. A cultura “adulta” adoptou o fato e gravata como marcador estílistico de diferenciação sócio-económica ou sócio-cultural. Por isso é que as gravatas são tão usadas, sem terem uma utilidade real.
Quanto a mim, enquanto puder, vou andando sem gravata. O que em si é também uma forma de resistência a esta tendência de privilegiar o parecer ao ser. Prefiro que me perguntem que profissão tenho a deduzirem que sou doutor porque uso um pedaço de pano colorido amarrado ao pescoço. E, já agora, “doutor” a sério para mim, neste momento, é o canalizador que me resolveu um problema cá em casa há umas horas. E não precisou de gravata para fazer o seu trabalho.

Publicada porVictor Silva à(s) 23:58  

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